quinta-feira, 4 de agosto de 2022


Pássaros caindo do céu. Pardais. Milhões e milhões de pardais. Caíam como chuva em cima de mim, e eu ficava todo coberto de sangue e não conseguia encontrar um lugar onde me proteger. Os bicos me rasgavam a pele como flechas. E o avião de Buddy Holly também estava caindo do céu, e eu ouvia Waylon Jennings cantar “La bamba”. Ouvia Dante chorar… e quando virei para ver onde ele estava, o vi carregar o corpo inerte de Richie Valens nos braços. E então o avião começou a cair em nossa direção. Tudo que vi foi a sombra e a terra em chamas.
E então o céu desapareceu.
Eu devia ter gritado, porque minha mãe e meu pai estavam no quarto. Tremia, e tudo estava empapado de suor. Então me dei conta de que estava chorando e não conseguia parar. Meu pai me pegou e começou a me balançar na cadeira. Me senti pequeno e fraco. Quis abraçá-lo também, mas não tinha força nos braços. Quis perguntar se ele me abraçara assim quando eu era criança, porque não lembrava. Por que não lembrava? Comecei a pensar que talvez ainda estivesse sonhando, mas vi minha mãe trocar os lençóis da cama. Aquilo tudo era real. Menos eu


A solidão dos homens é maior que a das crianças. E eu não queria mais ser tratado como criança. Não queria mais viver no mundo dos meus pais e não tinha um mundo próprio. Estranhamente, minha amizade com Dante tinha feito com que me sentisse ainda mais solitário.
Talvez porque Dante conseguia se adaptar a qualquer lugar. E eu, eu sempre tinha a sensação de não pertencer a lugar nenhum. Não pertencia sequer ao meu próprio corpo — especialmente ao meu próprio corpo. Eu estava me transformando em um desconhecido. A mudança doía, mas eu não sabia por quê. E minhas emoções não faziam sentido.


Estas são as coisas que estão acontecendo na minha vida (em ordem aleatória):
— Fiquei com gripe e me sinto péssimo; também me sinto péssimo por dentro.
— Sempre me senti péssimo por dentro. Os motivos para isso são diversos.
— Contei a meu pai que sempre tive pesadelos. E é verdade. Nunca tinha contado a
ninguém. Só soube que era verdade ao falar.
— Odiei minha mãe por um minuto ou dois porque ela disse que eu não tinha amigos.
— Queria saber do meu irmão. Se soubesse mais sobre ele, será que o odiaria?
— Meu pai me pegou nos braços quando tive febre e eu quis ficar para sempre em seus braços.
— O problema não é que eu não ame minha mãe e meu pai. O problema é que não sei como amá-los.
— Dante é o primeiro amigo que já tive. Isso me assusta.
— Acho que se Dante me conhecesse de verdade, não gostaria de mim.


Quando saiu, desabei em lágrimas e soluços. Nunca estivera tão triste. Nunca estivera tão triste. Nunca estivera tão triste.
Meu coração doía mais que minhas pernas.
Sei que minha mãe ouviu. E teve a decência de me deixar chorar sozinho.
Passei a maior parte do dia olhando para a janela. Experimentei andar de cadeira de rodas pela casa. Minha mãe não parava de reorganizar as coisas para facilitar minha vida.
Trocávamos muito sorrisos.
— Você pode assistir TV — ela disse.
— Apodrece o cérebro — falei. — Tenho um livro.
— Está gostando?
— Sim. É meio difícil. Não as palavras. Mas, sei lá, o assunto. Acho que os mexicanos não são as únicas pessoas pobres do mundo.
Olhamos um para o outro. Não chegamos a sorrir. Mas sorrimos por dentro.
Minhas irmãs apareceram para o jantar. Meus sobrinhos e sobrinhas assinaram meu gesso. Acho que sorri muito; todos conversavam e riam e tudo parecia tão normal. Fiquei contente por meus pais; acho que era eu quem entristecia a casa.


— Fui nadar hoje — ele disse.
— Como foi?
— Amo nadar.
— Eu sei.
— Amo nadar — Dante repetiu. Depois, ficou em silêncio por uns instantes. E então continuou:
— Amo nadar… e você.
Fiquei calado.
— Nadar e você, Ari. São as coisas que mais amo.


— Você me odeia?
Não sei o que houve naquele instante. Eu estava com raiva de todos desde o acidente. Odiava Dante, odiava minha mãe, odiava meu pai. Todos. Mas, naquele instante, me dei conta de que não odiava ninguém. Não de verdade. Não odiava Dante nem um pouco. Só não sabia como ser seu
amigo. Não sabia como ser amigo de ninguém. Mas isso não significava que o odiava.
— Não — respondi. — Não odeio você, Dante.


Meu pai e eu éramos como a pintura de Edward Hopper. Bom, quase… não exatamente. Ele parecia mais relaxado quando nós dois saímos de manhã. Parecia tão à vontade,
como se estivesse em casa. Embora não falasse muito, não parecia distante. Era bom. Às vezes chegava a assobiar, aparentemente feliz por estar comigo. Talvez meu pai não precisasse de palavras para sobreviver no mundo. Eu não era assim. Bom, eu era assim por fora; fingia não precisar de palavras. Só que não era assim por dentro.
Compreendi algo sobre mim mesmo: por dentro, não parecia com meu pai em nada. Por dentro, parecia mais com Dante. O que me deixou bem assustado.


Antes, eu vivia em um mundo que era feito das coisas que eu pensava. Eu não sabia que esse mundo era pequeno. Estava sufocando em meus próprios pensamentos. Era como viver em um mundo de faz de conta. E o mundo em que eu passara a viver estava ficando cada vez maior. Para começar, havia um céu nesse novo mundo em que eu vivia. Era azul, grande e bonito. Mas onde no meu mapa eu escreveria a palavra "feliz"? Onde no meu mapa escreveria "desejo"? 
Um pensamentos surgiu na minha cabeça: feliz e desejo não andam de mãos dadas. São palavras que nunca andam de mãos dadas.
O desejo não deixa ninguém feliz... deixa angustiado.